Sobrevivente de violência de gênero reconstrói sua vida com ajuda de projeto do ACNUR

O ACNUR está treinando mulheres na RDC para aprender habilidades úteis que aumentam sua autossuficiência e desafiam os estereótipos de gênero

Therese* inspeciona o motor de um caminhão quebrado em Kananga, na República Democrática do Congo. © ACNUR / Vittoria Moretti

Therese* atrai uma pequena multidão de curiosos enquanto se ajoelha diante do motor enferrujado e quebrado de um caminhão estacionado perto de sua casa nos arredores de Kananga, na província de Kasai Central, na República Democrática do Congo.


Seus vizinhos ouvem maravilhados enquanto ela avalia cuidadosamente a extensão dos danos, explicando quais reparos são necessários.

Embora a mulher de 47 anos possa parecer deslocada no campo da mecânica automobilística, tradicionalmente dominado por homens, foi na garagem de um mecânico que ela encontrou esperança novamente depois de sobreviver a uma agressão sexual e suas consequências.

Em 2017, confrontos violentos entre milícias armadas e forças armadas congolesas atingiram sua cidade natal, Luebo, a cerca de 300 quilômetros de Kananga. 

“Naquele dia, houve uma tragédia. Houve tiros por toda parte e começamos a fugir em pânico”, lembra ela.

Um grupo de homens armados matou o marido de Therese na sua frente antes de incendiar sua casa. Ela conseguiu escapar para a floresta com seus 10 filhos.

“O que (os homens armados) fizeram comigo me destruiu completamente”

Mas seu pesadelo estava apenas começando. Na floresta, encontrou quatro soldados que estupraram ela e sua filha de 22 anos sob a mira de uma arma, na frente de seus outros filhos. Por mais de três semanas depois, a família se escondeu no mato para evitar novos ataques. Durante esse tempo, seus dois filhos mais novos morreram de fome. 

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Therese* inspeciona o motor de um caminhão quebrado em Kananga, na República Democrática do Congo. © ACNUR / Vittoria Moretti

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Therese* está sentada do lado de fora de sua casa em Kananga, na República Democrática do Congo. © ACNUR / Vittoria Moretti

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Therese* em sua casa em Kananga, na República Democrática do Congo © ACNUR / Vittoria Moretti

Eles finalmente conseguiram chegar em segurança em Kananga, mas as lutas de Therese estavam longe do fim. O estupro a traumatizou e ela não conseguia uma fonte de renda para sustentar a si mesma e aos filhos. Therese e sua filha também foram confrontadas com o duplo estigma e discriminação que cerca a violência sexual em Kasai, isolando-as da comunidade anfitriã.

“O que (os homens armados) fizeram comigo me destruiu completamente”, diz. “Tenho medo pela minha filha. Eu me pergunto se ela algum dia vai se casar e ter filhos, porque em nossos costumes e tradições, as mulheres que sofreram abuso são frequentemente rejeitadas”.

A esperança finalmente surgiu na forma de um programa de treinamento vocacional, patrocinado pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), que dá a sobreviventes como Therese as ferramentas para serem financeiramente independentes e autossuficientes. 

As mulheres são capacitadas pelo Instituto Nacional de Capacitação Profissional (INPP), em setores tradicionalmente dominados por homens, como o automotivo, eletrônico e informática (tecnologia da informação). O objetivo é que elas tenham as competências necessárias para sustentar suas famílias, ao mesmo tempo em que desafiam estereótipos de gênero, e abrem o caminho para outras mulheres ganharem a vida nessas áreas.

A parceira do ACNUR, Femmes Mains dans la Main pour le Development du Kasai (FMMDK), uma ONG local liderada por mulheres que atua na proteção e promoção dos direitos das mulheres em Kasai, ajuda a identificar as mulheres.

“Esses são projetos tão importantes porque oferecem aos sobreviventes a chance de reconstruir suas vidas”

Além de receber atendimento médico e psicossocial, Therese aprendeu mecânica e a dirigir, junto com outras sobreviventes de violência sexual.

“Esses são projetos muito importantes porque oferecem às sobreviventes da violência sexual a chance de reconstruir suas vidas e se tornarem parte da comunidade novamente. Essas comunidades, por sua vez, se beneficiam imensamente de seus novos conjuntos de habilidades e experiência”, disse Liz Ahua, Representante do ACNUR na RDC. 

Depois de quase oito meses de treinamento, Therese já sabe dirigir, desmontar e consertar motores, pneus e freios. Após a formatura, ela recebeu sua carteira de motorista e, em breve, iniciará um negócio de mecânica de automóveis com algumas das outras mulheres.

Desde 2020, quase 400 sobreviventes e pessoas em risco de violência baseada em gênero nas províncias de Kasai e Kasai Central receberam assistência do ACNUR e seus parceiros por meio de treinamentos vocacionais em diferentes setores.

No entanto, ainda há muito a fazer para combater a violência sexual em uma região onde ela continua fazendo parte de um ciclo de conflito e insegurança recorrentes e onde as normas sociais exigem que as mulheres vítimas de violência paguem dote antes de serem readmitidas na sociedade. A prática frequentemente resulta na expulsão das mulheres de famílias que não desejam arcar com os custos desses dotes. 

Mais de 800 sobreviventes foram identificados pelo ACNUR e parceiros na região de Kasai entre janeiro e julho de 2021 e receberam assistência jurídica, médica e psicossocial. 

A agência também apoia organizações locais, como FMMDK, que estão se envolvendo com as comunidades para abordar as causas profundas da violência de gênero e para quebrar o ciclo vicioso de discriminação e pobreza que coloca os sobreviventes em risco de exploração e novos abusos. Mais financiamento é necessário para implementar projetos como o que deu a Therese uma tábua de salvação.

Hoje, Therese renovou sua autoconfiança e pode olhar para o futuro com esperança novamente, enquanto espera para começar a trabalhar em uma nova garagem que será inaugurada nos próximos meses com o apoio do ACNUR.

“Aprendi uma profissão que amo muito. Isso vai me permitir ser independente e cuidar da minha família”, diz ela.

* nome alterado por motivos de proteção.