Haitiano deslocado por terremoto atua no Brasil em projeto de educação para as mudanças climáticas
Haitiano deslocado por terremoto atua no Brasil em projeto de educação para as mudanças climáticas
Robert Montinard sentiu na pele a intensidade dos desastres naturais em sua vida e de sua família. Ele, sua esposa e dois filhos ainda crianças tiveram que deixar Porto Príncipe, a capital do Haiti, quando em janeiro de 2010 um tremor de magnitude 7 dizimou mais de 300 mil pessoas, afetando diretamente a eles.
“Minha casa foi destruída no Haiti e graças a minha mulher eu consegui sobreviver. Ela conseguiu me tirar debaixo dos escombros e meu filho mais velho, com apenas dois anos de idade, também foi resgatado após três dias de buscas incessantes. Não à toa digo que minha família representa para mim superação”, disse Robert de forma emocionada.
Dentre as diversas perdas afetivas, seu melhor amigo foi encontrado morto na catástrofe ambiental que deixou sua terra natal em ruínas. Furacões vieram em seguida, devastando ainda mais a já frágil infraestrutura do Haiti. Em meio a esse caos, ele tomou a difícil decisão de abandonar suas raízes em busca de segurança, cuidados de saúde e estabilidade para o futuro de seus filhos.
A trágica combinação de eventos climáticos extremos mais frequentes, catástrofes naturais de alto impacto e as mudanças climáticas têm feito pessoas se deslocar cada vez mais nas Américas e nos demais continentes do mundo. Dados do relatório “Sem Escapatória” da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) afirmam haver uma intersecção entre mudanças climáticas, conflitos armados e deslocamento forçado de pessoas.
Globalmente, 90 milhões de pessoas deslocadas vivem em países de alta a extrema exposição a perigos relacionados ao clima e quase metade de todas as pessoas deslocadas à força sofrem da combinação entre conflitos e os efeitos adversos das mudanças climáticas. O Haiti é um exemplo de um país que enfrenta uma crise multi-dimensional. Para além das consequências do terremoto e outros desastres naturais, o contexto humanitário, político, de segurança e de direitos humanos no país dificulta o retorno digno e em segurança de pessoas exiladas. Desde março de 2024, o ACNUR fez um chamado aos Estados para não forçar o retorno de haitianos, até que a situação no país melhore significativamente.
Para além das dificuldades do deslocamento em si, a chegada a um novo país representa muitas incertezas. Com Bob e sua família não foi diferente.
“Escolhi o Brasil por suas semelhanças culturais com o Haiti e porque precisava de proteção”.
Barreiras linguísticas, dificuldades econômicas e a dor de estar separado de seus parentes e amigos foram sentimentos constantes. Adaptar-se à vida no Rio de Janeiro exigiu resiliência e em família, Bob abraçou sua herança cultural e a compartilhou com sua nova comunidade, organizando eventos de culinária haitiana, apresentando músicas e contando suas experiências de vida.
“Cada vez que compartilho minha história, isso me ajuda a curar e a me conectar com o lugar em que estamos, com os amigos que passamos a fazer”.
No Haiti, Bob atuava como mediador da ONU em resolução de conflitos e segurança comunitária. No Brasil, ele teve que reconstruir sua carreira ao lado de Melanie, sua esposa, quando então decidiram fundar a organização social Mawon, que atua na promoção de direitos e de inclusão produtiva de pessoas refugiadas e migrantes no Brasil.
“De fato não foi fácil me integrar efetivamente no Brasil, mas agora meu caminho está traçado. Fundamos a Mawon e apoiamos a quem precisa para que não passem pelos mesmos problemas que enfrentamos. Meus filhos convivem bem com os amigos da escola e do bairro, gostam daqui. E agora estou trabalhando em um projeto de educação ambiental chamado Mural do Clima”, disse.
A experiência de Bob como sobrevivente de desastres lhe deu uma perspectiva única sobre as conexões entre deslocamento forçado, desastres naturais e mudanças climáticas. Sua paixão pela educação ambiental o levou a adotar a metodologia do Mural do Clima, uma iniciativa francesa que ensina sobre mudanças climáticas por meio de oficinas colaborativas.
Desde o início do ano passado, Bob implementou o projeto em escolas, universidades, empresas e diversos espaços comunitários, incluindo centros de refugiados e favelas no Rio de Janeiro.
“Meu trabalho é transformar vítimas em protagonistas. Trata-se de empoderar refugiados e migrantes para educar e liderar processos que eles mesmos vivenciaram, assim como eu enfrentei”.
A visão de Bob para o futuro reflete seu sonho de expandir a educação ambiental no Brasil, equipando grupos sociais em situação de vulnerabilidade socioambiental com habilidades para enfrentar desafios climáticos. Ainda assim, ele reconhece os obstáculos socioeconômicos que persistem.
“Ainda sinto o rótulo de ser refugiado, de ser visto como alguém de demanda ajuda e não como alguém que posso prover conhecimentos e compartilhar experiências de inovação social”, afirma.
No fim do ano passado, Bob participou do G20 Social, trazendo sua experiência na mediação de uma mesa de discussões sobre a necessidade de criar e fortalecer soluções de redução da fome e da pobreza entre a população refugiada.
Em dezembro, Bob participou com outras pessoas refugiadas empreendedoras de projetos sociais de uma roda de conversas com o Alto Comissário do ACNUR, Filippo Grandi, que esteve em visita ao Brasil e reforçou a necessidade de se atentar para a correlação entre clima e deslocamento.
“A inclusão das pessoas refugiadas em políticas públicas é uma das formas mais concretas de proteção e defesas dos seus direitos. Neste sentido, o Brasil desempenha um papel exemplar”, afirmou o chefe do ACNUR. “Ademais, ao passo que as mudanças climáticas forçam mais pessoas a se deslocarem, é fundamental que as vozes das pessoas que vivenciaram esta situação sejam incluídas nos planos de ação dos governos. Além do conhecimento, essa participação agrega mais efetividade às respostas emergenciais e de longo prazo. Também nessa esfera o Brasil está na vanguarda,” completou.
A atuação de Bob fortalece justamente essa posição por não ser apenas sobre sobreviver às adversidades, mas sobre usá-las como base para construir ações de inclusão e soluções. Ela exemplifica o poder dos indivíduos de superar desafios e criar mudanças significativas, mesmo diante de obstáculos avassaladores.
Ainda que retornar ao Haiti seja uma consideração emocional para Bob, ele é claro sobre suas prioridades atuais.
“O Haiti atual não está pronto para receber de volta a mim e a minha família, não estamos prontos para voltar. Minha luta está aqui, no Brasil, e é aqui que os refugiados podem contribuir para as discussões sobre respostas às mudanças climáticas e aos desastres naturais com a COP30 por vir”.