A coisa mais importante: um ano da crise rohingya

Se um conflito te obrigasse a fugir de casa, o que você levaria consigo? Refugiados rohingya compartilharam conosco o que eles levaram.

Noor e sua filha Roshida: "O presente mais importante que nos foi dado é o som de sua voz".

Há um ano, mais de 700 mil refugiados rohingya caminharam durante dias, enfrentando viagens perigosas até alcançar a segurança em Bangladesh. A maioria são mulheres e crianças. Muitos falam de violência extrema. Alguns ainda possuem os itens que levaram consigo quando fugiram, guardando-os como lembretes de entes queridos ou de um modo de vida que tiveram que deixar para trás.

Qual é a coisa mais importante que você trouxe consigo?

O projeto fotográfico “A coisa mais importante” traz respostas surpreendentes e cuidadosas. Aqui, onze refugiados rohingya apresentam as coisas que tem mais importância e significado para eles. Conheça um pouco sobre essas pessoas*:

Nuras encontrou esse bebê enquanto fugia de um ataque na aldeia onde morava.

Refugiada rohingya Nuras segura seu bebê no campo de refugiados em Bangladesh. © ACNUR / Brian Sokol

Nuras segura seu bebê no campo de refugiados em Bangladesh. © ACNUR / Brian Sokol

 

Depois que seus vizinhos foram assassinados, Nuras, de 25 anos, e seus quatro filhos foram perseguidos. Enquanto corria, ela ouviu um bebê chorando. Ela o encontrou perto dos corpos de dois rohingya mortos, em um arrozal seco e distante, agitando os braços. Com a criança nos braços, Nuras andou com seus filhos o dia todo e finalmente chegou à fronteira de Bangladesh, onde o marido, que havia ido na frente, os esperava. Ela procurou um familiar do bebê, mas não havia ninguém exceto ela.

“Se morrermos, morreremos juntos.”

Refugiada rohingya Noor e sua filha Roshida. © ACNUR / Brian Sokol

Noor e sua filha Roshida. © ACNUR / Brian Sokol

 

No final de agosto de 2017, assim que as casas da vizinhança começaram a queimar, Noor correu para a escuridão com seus seis filhos. “Se morrermos, morreremos juntos”, disse ela. Enquanto corriam, os vizinhos que fugiam ao lado deles foram baleados e mortos. De repente, houve uma forte explosão e Noor se virou para encontrar Roshida, de sete anos, deitada no chão. Demorou um mês, indo de aldeia em aldeia, antes que eles conseguissem chegar a Bangladesh.

“Foi tão difícil que não temos palavras para começar a explicar para você. A maior perda que sofremos foi a perna dela. E o presente mais importante que nos foi dado é a vida dela – é o som de sua voz”.

 

“Eu não sei porque Allah não me deixou morrer.”

Refugiada rohingya Kalima ainda luta com as memórias do passado. © ACNUR / Brian Sokol

Kalima ainda luta com as memórias do passado. © ACNUR / Brian Sokol

 

Kalima ainda luta com as memórias do massacre. Ela diz que nada é importante para ela depois das perdas indescritíveis que sofreu em Mianmar. Ela havia se casado há apenas três meses quando atacantes chegaram à sua aldeia, queimando casas e abrindo fogo contra as pessoas. Cercado por homens armados, Kalima assistiu aterrorizada, quando bebês foram jogados na água e grupos de crianças foram incendiados. O marido e a irmãzinha de Kalima foram baleados. Ela foi brutalmente espancada e estuprada por vários homens, antes de ser deixada inconsciente. Quando acordou, a casa estava em chamas. Ela fugiu, andando por três dias com seu tio e prima até Bangladesh. Kalima era costureira e gostaria muito de costurar novamente. Quando perguntada sobre sua especialidade, ela se transforma em uma jovem confiante: “O que você precisar!” Ela diz, sorrindo.

 

“Se eu não tivesse minha bengala, eu teria me arrastado até Bangladesh.”

Refugiado rohingya Omar, de 102 anos e cego, sobreviveu seguindo as vozes dos outros refugiados. © ACNUR / Brian Sokol

Omar, de 102 anos e cego, sobreviveu seguindo as vozes dos outros refugiados. © ACNUR / Brian Sokol

 

A coisa mais importante que Omar, de 102 anos e cego, trouxe consigo é sua bengala. Ele e seus vizinhos fugiram de suas casas após testemunharem um terrível ataque a uma aldeia próxima. Omar encontrou seu caminho seguindo as vozes dos outros refugiados e usando sua bengala.

“Em um ponto, depois de pular de um barco de pescador, eu fiquei perdido em uma floresta de mangue por sete horas, com água até o pescoço.”

Ele chora quando conta essa história angustiante. Omar diz que deixar sua aldeia foi a coisa mais difícil que ele já fez, mas agora que está seguro e reunido com sua família, ele está feliz e em paz. “Se você rir, os outros vão rir com você. E se você parar de rir, você vai morrer “.

 

“Se eu estiver em crise, talvez ninguém venha me ajudar – mas Shikari sempre virá.”

Refugiado rohingya Jamir,15 anos, senta com seu cão Shikari. © ACNUR / Brian Sokol

Jamir,15 anos, senta com seu cão Shikari. © ACNUR / Brian Sokol

 

Jamir, 15 anos, senta com seu cão Shikari, do lado de fora da pequena loja que sua família dirige em um assentamento de refugiados no sul de Bangladesh. Jamir, cuja família fugiu de Mianmar há 28 anos, nasceu no assentamento e nunca pôs os pés em Mianmar. “Eu o vi pela primeira vez no outono passado, logo depois que ele chegou de Mianmar com um refugiado rohingya”. Quando o animal se aproximou dele e cheirou o pé, Jamir jogou um pedaço de comida. Depois que o cachorro pulou no ar para pegá-lo, Jamir o nomeou Shikari, que significa “caçador”. O jovem e seu cachorro são inseparáveis desde então. Shikari até dorme do lado de fora da loja da família, onde Jamir passa a noite.

 

“Só tive tempo de pegar um painel solar e chamar meus filhos.”

Refugiada rohingya Hafaja segurando sua placa soar. © ACNUR / Brian Sokol

Hafaja segurando sua placa soar. © ACNUR / Brian Sokol

 

Hafaja, 60, estava fora de sua casa quando os atacantes chegaram à sua aldeia, no estado de Rakhine, em Mianmar. “Se eu tivesse um minuto para escolher outra coisa, eu teria trazido nosso dinheiro”, diz ela. “Nós tínhamos 500.000 kyat (cerca de US $ 375) que era a poupança da nossa família, mas está perdido.” Hafaja observou a casa queimando de uma floresta próxima, em um campo cheio de corpos de vizinhos que não conseguiram fugir a tempo . Ela andou por três dias com o painel em uma mão e uma bengala na outra. “O painel solar é importante porque quando anoitece, a luz me permite rezar e cozinhar. Me sinto mais segura quando a luz está acesa. Eu perdi minha terra, meu dinheiro e minha casa, mas isso não importa. Eu ainda tenho meu marido e meus filhos. Outros não tiveram tanta sorte”.

 

“Em Mianmar, eu tinha uma casa grande, água limpa e um bom trabalho.”

Refugiado rohingya Mohammed e seus documentos educacionais. © ACNUR / Brian Sokol

Mohammed e seus documentos educacionais. © ACNUR / Brian Sokol

 

A coisa mais importante que Mohammed, 26, trouxe consigo para Bangladesh são os seus certificados educacionais, necessários para qualquer emprego formal no seu país de origem. Ele era a única pessoa de sua aldeia a estudar em uma universidade. O jovem quase conseguiu um bacharelado em inglês quando os rohingya foram proibidos de frequentar a Universidade Sittwe em Mianmar. Quando voltou para sua aldeia, encontrou trabalho com uma organização para ajudar as pessoas. Depois que um vilarejo vizinho foi atacado e Mohammed não conseguiu salvar um menino de 10 anos, que foi encharcado de gasolina e incendiado, ele pegou seus certificados de educação, seu laptop e uma muda de roupa e fugiu. Logo depois, sua aldeia foi incendiada, as mulheres foram violentadas e homens foram mortos. “Aqui, eu não me sinto bem. Em Mianmar, eu tinha uma casa grande, água limpa e um bom trabalho. Eu quero voltar – mas não irei a menos que nos seja dada cidadania”.

 

“Quando vejo essa roupa, sinto falta do meu país, da minha casa e da minha vida anterior.”

Refugiado rohingya Noor mostra a roupa que usava no dia em que fugiu. Foi o que restou. © ACNUR / Brian Sokol

Noor mostra a roupa que usava no dia em que fugiu. Foi o que restou. © ACNUR / Brian Sokol

 

A única coisa com que Noor escapou foram as roupas que ele usava naquele dia – uma saia de tecido conhecida como lunghi. Em Mianmar, o governo não deixa que os rohingya estudem para se tornarem médicos. Mas Noor ganhou habilidades no exterior e estava determinado a tratar as doenças que atormentavam sua comunidade em casa, como febre e diarréia. “As pessoas me viam todos os dias para o tratamento porque eu sou honesto e as tratava com amor”, lembra ele. Quando os ataques em sua aldeia começaram, ele tratou incontáveis sobreviventes de estupros e espancamentos. Ele foi preso repetidamente e muitas vezes multado. Em agosto de 2017, quando queimaram casas em uma aldeia próxima, ele fugiu com sua esposa e seus oito filhos. Demorou 15 dias para chegar ao assentamento de refugiados em Bangladesh. A única coisa que ele trouxe foi a saia que usava naquele dia. “Quando vejo isso, sinto falta do meu país, da minha casa e da minha vida anterior”, diz ele. “É o lunghi que vou usar quando voltar para Mianmar.”

 

“Vamos voltar, reconstruir e produzir novamente.”

Refugiado rohingya Mohammed trouxe consigo seus documentos de uso da terra de Mianmar. © ACNU / Brian Sokol

Mohammed trouxe consigo seus documentos de uso da terra de Mianmar. © ACNU / Brian Sokol

 

A coisa mais importante que Mohammed trouxe consigo são os documentos de uso da terra de Mianmar. Antes de ser forçado a fugir de sua casa, Mohammed era presidente de sua aldeia e possuía uma próspera fazenda de 132 acres que incluía uma grande casa familiar, dois lagos, um arrozal, legumes e várias vacas, galinhas e cabras. Hoje, o homem de 44 anos vive em um assentamento de refugiados no sul de Bangladesh, sem comida suficiente para alimentar sua família. A coisa mais importante que Mohammed trouxe consigo são os documentos de uso da terra de Mianmar. “Vamos voltar, reconstruir e produzir novamente”, diz ele. Mohammed diz que só retornará quando os rohingya forem contados como um dos grupos étnicos oficiais de Mianmar e receberem cidadania.

 

A corrente ao redor do pescoço de Yacoub é a única coisa que restou para lembrá-lo de seu pai.

Refugiado rohingya Yacoub usando a corrente no pescoço, último presente do pai. © ACNUR / Brian Sokol

Yacoub usando a corrente no pescoço, último presente do pai. © ACNUR / Brian Sokol

 

A última vez que eles se falaram, era de manhã cedo e seu pai estava saindo para recolher lenha. Nesse mesmo dia, houve um ataque brutal na aldeia de Yacoub, de 15 anos. Quando viu sua casa queimando, Yacoub, que perdeu a mãe no parto quando tinha oito anos, pegou as duas irmãzinhas pela mão e correu descalço pela selva. Eles ficaram escondidos por 15 dias, vivendo de biscoitos e chá trazidos da loja de seu tio e depois de maçãs que colhiam pelo caminho. Yacoub  havia comprado esse colar com o dinheiro que seu pai lhe dera como presente. O menino agora mora sozinho em uma barraca, com apenas seu novo filhote de cachorro Sitara, um tapete de dormir e um cobertor. Sua tia, tio e irmãs moram na casa ao lado. Ninguém sabe o que aconteceu com seu pai.

 

Shahina, de cinco anos, levaria consigo seria sua bolsa azul cheia de produtos de beleza.

Refugiada rohingya Shahina e sua bolsa azul. ©ACNUR / Brian Sokol

Shahina e sua bolsa azul. ©ACNUR / Brian Sokol

 

A garotinha diz que esses itens a fazem se sentir bonita e que ela adora ver as garotas rohingya mais velhas fazendo caretas. Quando a mãe de Shahina, Nosina, viu o último fluxo de pessoas rohingya fugindo de Mianmar, ela estava aliviada por seus filhos já estarem seguros em Bangladesh. Ela fugiu de sua aldeia em Mianmar, sete anos atrás, com seus dois filhos pequenos.

 

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* Todos os nomes foram alterados por questão de proteção.