“Não vou mais esconder quem eu sou”

Quando uma gangue criminosa ameaçou os filhos adolescentes de Ana e Paula*, a família fugiu para salvar sua vida

Um casal LGBTI que fugiu da violência na América Latina caminha de mãos dadas pelas ruas de sua nova casa, Genebra, Suíça. © ACNUR / Mark Henley

No bairro precário onde sua família morava em Honduras, membros de gangues criminosas perceberam quando a filha de Paula chegou à adolescência.


“Eles falaram que minha filha, ‘logo seria medida em reais’”, disse Paula, explicando que a frase é usada por membros da gangue para descrever as meninas que eles consideram prontas para a exploração sexual. “Eles disseram, ‘nós vamos levá-la’”.

Paula morava com sua parceira, Ana, que também é mãe. Dias depois, a gangue voltou sua atenção para o filho de Ana, Oscar, que estava prestes a fazer 13 anos.

“Um membro da gangue disse, ‘Paula, eu vou começar a vender drogas aqui no quarteirão… Eu vou precisar do seu enteado. Volto amanhã’”.

A gangue, conhecida como mara, começou em Los Angeles nos anos 80 e, desde então, comanda atividades criminosas em ambos continentes, reinando com violência, como no bairro de Ana e Paula. A gangue praticava extorsão, operava redes de prostituição e recrutava membros à força.

Ana nunca daria seu filho para as gangues, mas ela sabia o que recusar significaria para ela e Paula. “Eles iriam nos matar”, afirmou.

A única opção do casal era escapar. Paula vendeu sua única posse, uma motocicleta. O casal reuniu as certidões de nascimento dos filhos e a família saiu de casa com um plano de buscar segurança no exterior.

“Eu sabia que eles iriam nos matar”

Ao redor do mundo, muitas pessoas que fazem parte da comunidade LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, intersecionais; ou queer) são forçadas a abandonar suas casas para salvar suas vidas. Muitas fogem de perseguições devido ao seu sexo ou orientação sexual. Outras, como Paula, 32, e Ana, 40, estão imersas em uma violência mortal que assola seu país natal e encaram dificuldades particulares devido sua sexualidade ou identidade de gênero. Tanto em seu país de origem como fora dele.

Sua situação é compartilhada por um número crescente de pessoas em Honduras, Guatemala e El Salvador, onde a violência brutal de gangues – exacerbada pela pandemia de Covid-19 e desastres naturais – tornou a vida quase impossível.

A jornada por terra em busca de segurança é repleta de perigos. Os requerentes de asilo enfrentam roubos, agressões sexuais e sequestros, muitos ainda se afogam ao tentar atravessar rios de fronteira ou morrem em acidentes de trânsito. A família de Paula e Ana foi roubada na Guatemala. Sem passagens de ônibus, sua família caminhou por três dias até chegar ao sul do México.

“Os pés da Paula estavam cobertos de ferimentos e sangravam após a travessia para a Guatemala”, afirmou Ana.

No México, a família dormiu na rua e em um abrigo – onde Paula foi abordada por um homem que exigia saber se ela era homem ou mulher. Finalmente alguns dias depois do incidente, uma família mexicana em uma comunidade rural acolheu a família, oferecendo-lhes água e um ensopado de toupeira feito com iguana.

“São pessoas muito boas. Não têm muito e abriram sua casa para nós”, Paula afirmou. A família de refugiados ficou três meses na casa de um cômodo.

Após uma queda na taxa de pedidos de asilo no México em 2020 devido à pandemia de covid-19, o número de pessoas que fogem da América Central – sobretudo El Salvador, Guatemala e Honduras – está aumentando novamente.

Nos três primeiros meses de 2021, a Comissão para Assistência de Refugiados no México (COMAR) registrou cerca de 30 mil novos pedidos de asilo, número quase um terço maior do que o mesmo período no ano passado. O mês de abril de 2021 marcou um recorde histórico para os pedidos de asilo, chegando a mais de 9.100 solicitações.

O México reconhece o gênero como um motivo independente para uma pessoa solicitar asilo. Dentro do gênero, o COMAR muitas vezes reconhece que aqueles que fugiram por causa de sua orientação sexual ou identidade de gênero têm grandes chances de receber proteção.

A luta para solicitantes de asilo LGBTQIA+ normalmente é acompanhada de uma vida marcada pela violência, assédio e discriminação em seu país natal, afirmou Sofia Cardona, associada sênior de proteção do ACNUR no México.

“Não tínhamos nada, mas estávamos juntas”

“Em Honduras, El Salvador e Guatemala, pessoas LGBTQIA+ sofrem de uma homofobia e transfobia generalizada. Isso pode vir das Igrejas, de autoridades e, particularmente, de suas famílias”, afirmou. “A experiência de discriminação cumulativa pode tornar a vida insuportável e forçá-las ao exílio”.

Ana lembra-se da violência em Honduras, onde foi espancada pela mãe por beijar uma menina e expulsa da escola. Mais tarde, ela foi estuprada por um namorado e forçada a um casamento que ela não queria, com outro nome. Paula disse que se recusou a se conformar com os papéis de gênero padrão, apesar de sua família.

Rejeitadas por suas famílias e submetidas a violência e abuso por causa de sexualidade ou de sua aparência, as pessoas LGBTQIA+ são muitas vezes marginalizadas, afirma Cardona. Esse é o caso de Ana e Paula, que foram forçadas a uma luta diária pela sobrevivência. “Não tínhamos nada – nenhum dinheiro, nada para cozinhar, mas estávamos juntas”, afirmou Ana.

Ana e Paula entraram com pedido de asilo no México e planejam o futuro. O ACNUR apoiou o casal, explicando seus direitos segundo a lei internacional e ajudando a determinar o que precisarão caso permaneçam no México – incluindo abrigo, atendimento médico, aconselhamento e assistência em dinheiro, assim como ajudar a encontrar escolas para seus filhos.

A família divide a assistência que recebe do ACNUR com seus anfitriões mexicanos. Por enquanto, elas estão contentes em viver em paz no campo, com quintal à sombra de uma mangueira, com algumas galinhas, um pato e um porco.

“Nós gostamos daqui. Esse vilarejo é um ambiente saudável, nossas crianças podem brincar sem ninguém incomodar. Nós podemos deixar a porta de casa destrancada…. É um bom lugar para criar nossas crianças”, afirma Ana.

Ana e Paula esperam se casar na Cidade do México, um dos 18 dos 31 estados mexicanos que permitem o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Elas estão esperançosas pelo futuro.

“Nossas crianças dizem ‘nós temos duas mães’. Elas não discriminam”, afirma Ana.

 

*Nomes foram alterados e alguns detalhes omitidos por razões de proteção.