Perfil das Solicitações de Refúgio relacionadas à Orientação Sexual e à Identidade de Gênero

Introdução

A proteção de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexos – LGBTI em condição de refúgio tem recebido cada vez mais atenção por parte da comunidade internacional. Não obstante o longo histórico de perseguições e trajetórias de deslocamentos em face de violações de direitos contra essa população, o desenvolvimento de marcos normativos para garantir sua proteção é recente.

Apesar da Convenção de 1951 sobre o Estatuto das Pessoas Refugiadas não abordar explicitamente perseguições por motivos de orientação sexual e/ou identidade de gênero (OSIG), o desenvolvimento doutrinário, jurisprudencial e normativo passou a reconhecer pessoas LGBTI como um grupo social específico dentro dos procedimentos de reconhecimento da condição de pessoa refugiada, dando um primeiro passo para interpretações inclusivas sobre a abrangência da Convenção de 1951 em relação à proteção dessa população. Tal interpretação passou a ser divulgada de forma sistemática pelo ACNUR – a Agência da ONU para  Refugiados – aos Estados e atores trabalhando na proteção de pessoas refugiadas em 2000, com a publicação da Nota sobre a Posição do Acnur em relação à Perseguição baseada no Gênero, posteriormente substituída, em 2002, pela Diretriz de Proteção Internacional nº. 1. Em 2009, o Acnur foi além e publicou a Diretriz de Proteção Internacional nº. 9 abordando especificamente perseguições motivadas por questões ligadas à orientação sexual e à identidade de gênero real ou percebida.

Atualmente, o ACNUR estima que aproximadamente 40 países reconhecem solicitações de refúgio cujo fundado temor se relaciona a perseguições motivadas por orientação sexual e por identidade de gênero. No entanto, ainda há muitos Estados que não adotam tal prática e/ou cujos procedimentos de reconhecimento da condição de refugiado estão aquém dos parâmetros defendidos pelo Acnur, o que inclui práticas não condizentes com os direitos humanos das pessoas LGBTI, tal como submissão a procedimentos invasivos e desrespeito ao direito à vida familiar e à privacidade por parte de pessoas refugiadas.

A primeira solicitação de reconhecimento da condição de refugiado em razão de temor de perseguição com base em OSIG reconhecida pelo Estado brasileiro se deu em 2002, a qual foi submetida por um casal de homens colombianos que vivia em uma região com elevadas taxas de violência homofóbica praticada por grupos armados, fato que claramente demonstrava a existência de fundado temor de perseguição por parte dos solicitantes. Felizmente, o Brasil tem demonstrado abertura em relação a este tema por meio do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), o qual, em parceria com o ACNUR e com a sociedade civil, vem trabalhando para garantir que pessoas refugiadas com fundado temor de perseguição por motivos relacionados a OSIG tenham acesso a um procedimento de reconhecimento da condição de pessoa refugiada sensível às suas necessidades de proteção específicas, garantindo a construção de espaços seguros e a capacitação para toda rede de proteção que trabalha com o tema.

Dulcie, 43, é transgênero e fugiu da Guatemala após ser perseguida pela polícia e por gangues. Ela encontrou segurança e abrigo com o apoio do ACNUR.  © ACNUR / Sebastian Rich

O presente perfil das solicitações de refúgio baseadas na orientação sexual e/ou identidade de gênero no Brasil é mais um passo na construção de um ambiente de proteção sensível às necessidades específicas das pessoas LGBTI. Os dados aqui contidos oferecem aos atores envolvidos na proteção de pessoas refugiadas informações relevantes para melhor responderem às necessidades específicas desta população, além de atender uma importante demanda de pesquisadoras/es que estudam o tema e estão engajadas/os na reflexão sobre essa pauta.

É importante ressaltar que esta ferramenta trata do perfil das solicitações cujo motivo da perseguição está relacionado à orientação sexual e/ou identidade de gênero real ou percebida. Sendo assim, a ferramenta não oferece uma visão geral sobre o perfil das pessoas refugiadas e solicitantes de refúgio LGBTI no Brasil: muitas pessoas que buscam refúgio optam por não revelar sua orientação sexual e/ou identidade de gênero durante o procedimento de reconhecimento da condição de refugiado, ou o fundado temor de perseguição que possuem não está diretamente relacionado à OSIG. A população LGBTI refugiada no Brasil é, por tanto, composta por um maior número de pessoas que aquelas que tiveram seu reconhecimento da condição de refugiadas em razão de perseguições com base na orientação sexual e/ou na identidade de gênero.

Além disso, conforme será explicitado adiante em relação à coleta de dados, limitações metodológica impedem afirmar que os dados apresentados oferecem um perfil da totalidade de solicitações de refúgio baseadas na OSIG. Trata-se de um número parcial que se aproxima do total.

Espera-se que os dados compartilhados por meio deste documento possam impulsionar ainda mais a agenda e os temas de proteção a pessoas LGBTI no Brasil, os quais vêm sendo divulgados e desenvolvidos em ações conjuntas envolvendo diversos órgãos governamentais e entes da Federação, o Sistema ONU no Brasil, organizações da sociedade civil – incluindo a rede de proteção a pessoas refugiadas e a rede de proteção a pessoas LGBTI – e a academia.

 

 

O ACNUR estima que aproximadamente 40 países reconhecem solicitações de refúgio cujo fundado temor se relaciona a perseguições motivadas por orientação sexual, identidade de gênero e/ou status sexual.

Metodologia

Este levantamento busca traçar o perfil das solicitações de refúgio no Brasil cujo motivo do fundado temor de perseguição está relacionado à orientação sexual e/ou identidade de gênero. Para tanto, a equipe de proteção do ACNUR – com apoio da Coordenação-Geral do Conare – pesquisou os processos de solicitação de refúgio registrados na base de dados do Conare para identificar casos que se relacionam com o recorte do levantamento. Além disso, listas de monitoramento de solicitações de reconhecimento da condição de refugiado realizadas pelas equipes de proteção dos parceiros do ACNUR foram verificadas quando disponíveis. Da mesma forma, também foi feita uma consulta manual aos arquivos do Conare – uma vez que a digitalização dos processos de refúgio se iniciou em 2015.

A maior parte dos dados foi obtida através de consulta ao Sistema Eletrônico de Informações – (SEI!) por meio de sua ferramenta de pesquisa textual. O argumento de pesquisa foi construído com o intuito de identificar todos os processos de solicitação de refúgio que contivessem termos relacionados à OSIG. Após consolidação das listas de dados, foram identificadas 369 solicitações de refúgio entre 2010 e 2016 cujo temor de perseguição está relacionado a questões ligadas à orientação sexual e/ou à identidade de gênero. Além disso, foi possível mapear decisões referentes a estes casos entre 2010 e 2018.

É importante ressaltar que, em que pesem as limitações da pesquisa pela ferramenta de busca textual – a qual identifica tão somente processos indexados ou com conteúdo digitalizado que possam ser capturados pelo mecanismo de busca – os dados apresentados neste perfil se aproximam da totalidade das solicitações de refúgio relacionadas à OSIG. Ademais, conforme explicado acima, os dados traçam um perfil das solicitações de refúgio, e não das pessoas refugiadas e solicitantes de refúgio LGBTI no Brasil. As solicitações que integram o perfil incluem não apenas solicitações feitas por pessoas LGBTI, mas também pessoas heterossexuais e cisgênero que são percebidas enquanto LGBTI por seus agentes perseguidores por motivos que incluem atividades políticas pela defesa dos direitos das pessoas LGBTI, pessoas que vivem com HIV/AIDS, dentre outros motivos.

Ademais, apenas dados obtidos por meio do monitoramento das solicitações de refúgio integraram este perfil. Nenhuma informação fornecida por pessoas solicitantes de refúgio ou pessoas refugiadas no âmbito de atendimentos de proteção com assistentes sociais ou outros funcionários das organizações parceiras do Acnur foi incorporado a este levantamento. Além disso, para garantir a confidencialidade e a privacidade das pessoas solicitantes e refugiadas, os dados foram agregados e anonimizados, impossibilitando qualquer identificação.

 

 

89,7% foram submetidas por pessoas vindas do continente africano, sobretudo da Nigéria (32,7%).

O Perfil das Solicitações de Refúgio Relacionados à Orientação Sexual e à Identidade de Gênero

O levantamento de dados realizado pelo ACNUR com apoio de seus parceiros e da Coordenação-Geral do Conare identificou 369 solicitações de refúgio submetidas às autoridades brasileiras entre 2010 e 2016, além de decisões referentes a estes casos proferidas pelo Conare entre 2010 e 2018. Dentre esses processos, quatro se referem a pedidos de reassentamento enviados ao Conare no âmbito do programa de Reassentamento Solidário. A maior parte das solicitações (89,7%) foram submetidas por pessoas vindas do continente africano, sobretudo da Nigéria (32,7%). Além disso, a maior parte das solicitações foram feitas por homens cisgêneros (87%). São Paulo foi a Unidade da Federação com o maior número de solicitações (77,5%), seguida pelo Distrito Federal (8,1%) e Rio de Janeiro (7,5%). Os principais países de origem são aqueles com legislações que criminalizam a homossexualidade e as pessoas trans, ou que possuem contextos sociais que não garantem a proteção de pessoas LGBTI – ou percebidas como tal – contra violência e abuso de direitos.

Para facilitar a visualização e consulta dos dados, o ACNUR – em parceria com o Conare a Campanha da ONU Livres & Iguais – preparou um painel de indicadores (Dashboard) que permite às pessoas interessadas, aos pesquisadores e pesquisadores, e demais atores engajados com a proteção de pessoas LGBTI aplicar filtros aos dados, incluindo país de origem, identidade de gênero e orientação sexual das pessoas solicitantes, ano de solicitação, UF de solicitação e faixa-etária. Acesse os dados:

 

SAIBA MAIS

 
 

Este levantamento foi realizado pela equipe de proteção do ACNUR. Os dados foram coletados e analisados por Diego Nardi, Giulianna Serricella e Hellen Carvalho, com apoio das estagiárias Mariana Alves, Manoella Cavalcanti e Matheus Virgílio (Coordenação-Geral do Conare). A equipe de pesquisa agradece à colaboração e apoio dado pelo Comitê Nacional para os Refugiados, sobretudo por seus coordenadores/as e oficiais de elegibilidade, em especial ao atual Coordenador Geral, Bernardo de Almeida Laferte, e à Ana Julieta Teodoro Cleaver (Oficial de Elegibilidade) pelos comentários e sugestões ao texto final. Além disso, o ACNUR agradece às equipes de proteção de seus parceiros, em especial à Larissa Leite (ex advogada da CASP), Fabrício Souza e Aryadne Bittencourt (CARJ), e Irmã Rosita Milesi e Paula Coury (IMDH) pelas informações prestadas, e à Sinara Gumieri pelo apoio prestado ao longo da pesquisa.