“A mudança climática é a crise de nosso tempo e impacta também os refugiados” 

Conselheiro Especial do ACNUR para Ação Climática destaca que o aquecimento global está levando ao deslocamento forçado e reforça necessidade de uma ação decisiva neste momento

Refugiados de Mali atravessam um terreno árido no campo de Goudobo, em Burkina Faso, fevereiro de 2020 © ACNUR/Sylvain Cherkaoui

Em 2019, perigos relacionados ao clima provocaram cerca de 24,9 milhões de deslocamentos em 140 países. Pesquisas indicam que, sem uma ação climática ambiciosa e uma redução dos riscos de tragédias ambientais, desastres relacionados ao clima podem dobrar o número de pessoas necessitando de ajuda humanitária para mais de 200 milhões a cada ano até 2050. Andrew Harper, o Conselheiro Especial do ACNUR para Ação Climática, conversou com o editor do site global do ACNUR, Tim Gaynor, em Genebra, para avaliar a situação atual e discutir como o ACNUR e seus parceiros precisam agir agora para evitar complicações.


Qual é o tamanho do impacto que a mudança climática vai gerar nas populações mais vulneráveis?

A mudança climática é a crise de nosso tempo e, para as pessoas em situação de vulnerabilidade, seu impacto é desigual em comparação com o restante da população. Pessoas deslocadas e apátridas estão entre as que mais precisam de proteção.

Devido ao rápido aquecimento global, as condições meteorológicas extremas – chuvas fortes, secas, ondas de calor e tempestades tropicais – estão se tornando mais imprevisíveis, intensas e frequentes. Além disso, elas aumentam o risco de novos perigos, como inundações, deslizamentos de terra, erosão, incêndios florestais e desertificação. Ao mesmo tempo, o aumento do nível do mar está trazendo inundações permanentes em áreas baixas.

Comunidades vulneráveis já sentem o impacto da mudança climática na comida, água, terra e outros ecossistemas necessários para a saúde humana, meios de subsistência e sobrevivência. Mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência e povos indígenas são afetados desproporcionalmente.

Em ambientes frágeis e afetados por conflitos, a resiliência aos choques climáticos, degradação ambiental e deslocamento costuma ser menor. No total, sete dos 10 países mais vulneráveis e menos preparados para lidar com as mudanças climáticas possuem operações de manutenção da paz ou alguma missão política especial. Além disso, o impacto ao meio ambiente pode intensificar as dinâmicas dos conflitos e outras causas de tensões locais.

As oito piores crises alimentares de 2019, todas em países onde o ACNUR opera, estão associadas com choques climáticos e conflitos. Sem uma ação climática ambiciosa e uma redução dos riscos de tragédias ambientais, desastres relacionados ao clima podem dobrar o número de pessoas necessitando de ajuda humanitária para mais de 200 milhões a cada ano até 2050.

 

O ACNUR é uma agência de proteção para os refugiados. Por que ele deveria estar envolvido na resposta ao deslocamento forçado em contextos de mudanças climáticas?

Como uma agência de proteção aos refugiados, obviamente nós estamos preocupados com pessoas que deixaram suas casas devido a conflitos ou perseguições. Embora possa ser desafiador fazer uma relação direta entre as mudanças climáticas e pessoas atravessando fronteiras internacionais, nós enxergamos que a mudança climática é um multiplicador de risco, ou um multiplicador de ameaça para outras causas de deslocamento.

A mudança climática não leva, em si, ao conflito. Porém, ela aumenta a insegurança alimentar, torna mais desafiador os acessos aos meios de subsistência e pressiona serviços de educação e saúde. Muitas vezes, isso se soma a pressões sob governos e acesso a recursos gerais. E, quando você tem desafios relacionados com queixas sociopolíticas, religiosas ou às estruturas comunitárias, a combinação de fatores pode ser a faísca para detonar tudo.

Se atores envolvidos não tomarem medidas proativas para mitigar essas vulnerabilidades, podemos esperar um aumento de conflitos no futuro. Esse é o nosso foco agora. Precisamos integrar melhor o nosso conhecimento atual e a ciência para tomar decisões mais integradas. É necesário fazer a ligação entre mudança climática, vulnerabilidade e deslocamento para antecipar os riscos.

Usando abordagens preventivas, podemos nos tornar uma agência menos reativa e que está mais bem preparada para fornecer proteção e lidar com os desafios mais urgentes – agora e no futuro.

 

Onde já estamos vendo a interação entre mudança climática, conflito e deslocamento?

A região do Sahel é um dos exemplos mais claros de como as mudanças climáticas podem interagir negativamente com outras megatendências. Por exemplo, no Sahel ocorre um aumento populacional expressivo e podemos esperar quase o dobro da população nos próximos 20 ou 30 anos. Ao mesmo tempo, o Banco Mundial informa que a produtividade do solo da região caiu mais de 30% ou 40%.

No total, temos um aumento da população, uma produtividade do solo decrescente e, ao mesmo tempo, questões envolvendo o governo. Esses fatores combinados podem ameaçar a sobrevivência dos grupos mais vulneráveis e aumenta o estresse na região, podendo gerar um alto risco de conflito.

Devemos nos perguntar: o Sahel será a única região enfrentando esses desafios ou podemos esperar tendências similares emergindo em outras regiões, sobretudo na África Ocidental ou na África Meridional? Não adianta simplesmente olhar para o conflito quando ele chega. Devemos antecipar onde a mudança climática vai intensificar tendências, crises e fragilidades a fim de ter um plano antes do início de um conflito.

 

Onde mais podemos ver essas tendências aumentando?

Cada região possui seus desafios particulares relacionados às mudanças climáticas, e cada contexto resulta em diferentes vulnerabilidades e especificidades. Porém, é importante que nos adaptemos mais em antecipar o impacto das crises ambientais em diferentes regiões pelos próximos 5, 10 e 15 anos. Assim, poderemos implementar programas que já abordem os desafios previstos. Devemos investir agora, em vez de esperar que as pessoas se tornem tão vulneráveis que precisam se deslocar.

Para fazer isso, estamos analisando nossos modelos e tentando aproveitar as lições aprendidas com o trabalho que tem sido feito para antecipar os movimentos populacionais na América Central e do Sul com base nas projeções climáticas. Uma ideia é usar essa metodologia em outras áreas, incluindo o Sahel, África Meridional e Sul da Ásia.

Também estamos prestando atenção na região do Sul do Pacífico, que enfrenta um risco sério de aumento no nível do mar. O que isso fará com o conceito de integridade territorial dos Estados? O que isso fará com o potencial de apátridas? Essas são perguntas que precisamos fazer e responder antes que seja tarde demais.

Também estamos vendo que, quando as pessoas são forçadas a se mudar devido às mudanças climáticas e conflitos, é muito raro que elas voltem. Antigamente, o retorno era uma solução duradoura quando o conflito terminasse. Agora, com as mudanças climáticas e a degradação ambiental tornando áreas de retorno muito perigosas para viver ou muito frágeis para aguentar uma grande população, muitas pessoas não têm mais para onde ir. Isso muda como o ACNUR precisa encarar e implementar soluções duradouras no futuro.

Refugiados Rohingya atravessam uma forte chuva de monções no campo de refugiados de Kutupalong, Bangladesh, em junho de 2018

Refugiados Rohingya enfrentam uma forte chuva de monções no campo de refugiados de Kutupalong, Bangladesh, em junho de 2018 © ACNUR / David Azia

O termo “refugiado climático” está crescendo na mídia, mas a Convenção dos Refugiados de 1951 não faz provisões para as pessoas deslocadas pelas mudanças climáticas. Se as pessoas são forçadas a atravessar as fronteiras de seus países, que proteções elas possuem?

A vasta maioria das pessoas deslocadas por ameaças climáticas continuam dentro das fronteiras de seus países. Com o tempo, o ACNUR atuou de maneira importante para dar suporte internacional, regional, nacional e subnacional para o desenvolvimento de leis e políticas relevantes para pessoas deslocadas internas. Nosso objetivo é construir uma resiliência nacional e capacidade de providenciar suporte para a população de forma que ela não seja forçada a se deslocar além das fronteiras nacionais.

Para aqueles que cruzam essas fronteiras, a estrutura legal para proteção internacional de refugados pode ser aplicável e servir para estender efetivamente a proteção internacional. Em particular, onde os efeitos das mudanças climáticas e desastres são integrados com violência, conflito ou perseguição que levam ao deslocamento, os indivíduos podem ser considerados refugiados segundo a Convenção de 1951. Não existem refugiados climáticos, mas, mesmo assim, não significa que a Convenção não possa ser aplicada em certas situações.

Além disso, a Organização da Unidade Africana e a Declaração de Cartagena incluem critérios mais amplos, reconhecendo refugiados como aqueles que, devido a “acontecimentos que perturbam gravemente a ordem pública”, são obrigados a abandonar o seu país. Esses mecanismos podem providenciar um grau maior de segurança e proteção às pessoas que fugiram de ameaças devido a perigos naturais. Nosso objetivo é garantir que os mecanismos de proteção existentes sejam totalmente utilizados.

 

Julgando um caso de um residente de Kiribati em busca asilo devidos aos efeitos do aumento no nível do mar, o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas concluiu em janeiro que os países não podem deportar indivíduos que enfrentam condições induzidas pelas mudanças climáticas que violam o direito à vida. O caso de loane Teitiota abriu uma porta para a reavaliação da mudança climática como motivo para a busca de asilo?

Foi uma decisão interessante porque observou que, de acordo com a lei internacional dos Direitos Humanos, mesmo aqueles que não são “refugiados” têm o direito de não serem deportados de um país caso isso represente um risco irreparável ao seu direito à vida. O Comitê observou que “sem esforços nacionais e internacionais robustos, os efeitos da mudança climática nos Estados anfitriões podem expor os indivíduos a uma violação de seus direitos”, de forma que outros países não poderiam deportá-los.

Mesmo vivendo uma situação séria em Kirabati, o Comitê determinou que, no caso especifico de Teitiota, seu direito à vida não estava sendo violado uma vez que medidas de proteção estavam sendo tomadas na região. No entanto, é reconhecido que os impactos das mudanças climáticas podem criar uma necessidade de proteção internacional no futuro – mesmo que não se aplique no caso de Teitiota. Assim, abre-se uma porta para uma análise maior e revisão das necessidades de proteção internacional.

Apesar do Comitê considerar que não haviam motivos suficientes no caso de Teitiota, analisando a probabilidade do nível do mar aumentar em lugares como Kiribati, justificativas parecidas podem ser aceitas no futuro. Isso fornece uma base para examinar melhor quais mitigações e adaptações seriam necessárias para permitir que pessoas continuem seguras em suas terras e com suas comunidades. Alguns locais vão se tornar ainda mais inabitáveis no futuro, então temos que estar à frente nas discussões de como podemos apoiar programas de resiliência, preparação e adaptação nessas áreas para comunidades deslocadas e anfitriãs.

É nesse sentido, por exemplo, que ano passado o Fórum Global sobre Refugiados em Genebra foi tão importante para a construção de parcerias estratégicas com agências de desenvolvimento e instituições regionais. Para os próximos passos, precisamos trabalhar nossa antecipação e ser uma organização adequada para o futuro, não apenas para o aqui e agora. Não pretendemos estender nosso mandato; estamos procurando fazer que haja proteção para aqueles que precisam dela.

 

O que o ACNUR está fazendo para mitigar o impacto ambiental nos campos de refugiados e em assentamentos?

Esse ano, desenvolvemos uma Abordagem Estratégica de Ação Climática que cobre três pilares de resposta. O primeiro pilar fala do trabalho legal e normativo relativo à proteção de pessoas que são obrigadas a se deslocar devido às mudanças climáticas.

O objetivo geral é apoiar o acesso à proteção para pessoas deslocadas no contexto de mudanças climáticas e desastres, orientando a interpretação e aplicação de estruturas legais e políticas relevantes, desenvolvendo orientações e catalisando discussões internacionais. O Departamento de Proteção Internacional também acaba de lançar um documento de considerações jurídicas sobre as necessidades de proteção internacional das populações.

O terceiro pilar diz respeito sobre o que o ACNUR está fazendo para se tornar verde. Procuramos melhorar a sustentabilidade ambiental reduzindo nossas emissões de gases de efeito estufa e minimizando os impactos negativos no meio ambiente. O foco será melhorar a coleta de dados sobre nosso uso de energia e identificar áreas de transição para energia sustentável e, de preferência, renovável.

O segundo pilar é o mais relevante para a sua pergunta. Ele fala sobre o que estamos fazendo com as pessoas deslocadas para aumentar sua resiliência ao clima e outros riscos ambientais, fortalecendo a preparação em situações de desastre. Isso inclui o apoio à gestão ambiental e à energia renovável em ambientes de deslocamento. Por exemplo, o campo de Kutupalong no distrito de Cox’s Bazar, em Bangladesh, recebeu um influxo de mais de 70 mil refugiados Rohingya que fugiram de Mianmar desde agosto de 2017.

Quando os refugiados chegaram, a única fonte de energia para cozinhar era a lenha cortada em florestas próximas e não demorou para esse recurso se esgotar. Quando isso aconteceu, fornecemos Gás Liquefeito de Petróleo e, agora, as pessoas não precisam mais cortar árvores. Além disso ser bom para a saúde dos habitantes do campo (que deixaram de respirar o carbono da lenha queimada), também protege as florestas ao redor do acampamento e contribui para a redução do risco de desastre por meio da estabilização do solo, reduzindo o risco de deslizamentos de terra. Ao fornecer energia alternativa limpa e reflorestar a terra, toda a comunidade fica mais resistente aos desastres naturais e condições climáticas extremas.

Também estamos tentando encontrar maneiras de expandir microprojetos e investir no meio ambiente ou em inciativas de energia que se integrem aos planos ambientais nacionais, planos nacionais de adaptação e planos de energia sustentável. O aumento de escala é crítico: plantar 100 hectares de árvores não é suficiente e, agora, é necessário plantar 100 mil hectares. É preciso fazer as coisas em grande escala e garantir que a comunidade local veja que há um benefício nessas ações.

 

Qual foi o impacto da pandemia de COVID-19 nos grupos mais vulneráveis ao clima? A resposta global tem alguma vantagem?

As populações deslocadas frequentemente têm meios de subsistência precários, acesso reduzido ou inexistente à redes de segurança social e serviços de saúde. Essas vulnerabilidades são aumentadas para aqueles que vivem em “zonas climáticas críticas”, ou onde os meios de subsistência já estão em risco devido às mudanças climáticas e degradação ambiental. A COVID-19 adiciona uma camada extra de vulnerabilidade.

Por exemplo, certas populações que vivem em acampamentos ou assentamentos vulneráveis na África Ocidental, África do Sul ou Sul da Ásia perderam seus empregos após a pandemia. Por isso, o que antes fornecia fonte de renda para esses assentamentos, agora se tornou mais um elemento que tensiona e aumenta a vulnerabilidade desse contexto. Em algumas dessas áreas a situação é intensificada pela degradação ambiental.

Porém, a resposta global à COVID-19 pode conter algumas lições úteis. Ela mostra que, se queremos mitigar o impacto de um desastre, é necessário estarmos preparados para agir de forma rápida e holística. Se ignorarmos isso, enfrentaremos consequências graves. Pensando nisso, o desafio do combate às mudanças climáticas é a complexibilidade da resposta. Como o ativista indígena Hindou Ibrahim disse recentemente na sessão de abertura do Diálogo do Alto Comissário sobre os desafios de proteção, “Você não pode usar uma máscara para as mudanças climáticas. Não existe vacina contra isso”.

Essa questão é séria. Precisamos responder de forma mais urgente e decisiva do que com a COVID-19, e isso não é o que está acontecendo no momento.

Se pudéssemos reduzir o tempo entre agora e os próximos 20 ou 30 anos, e fosse possível as pessoas enxergarem a intensidade do desastre que está prestes a acontecer sobre nós, então poderíamos esperar alguma ação. Infelizmente, por enquanto essa questão está apenas sendo deixada de lado e, em diferentes organizações (incluindo a nossa), nem sempre vemos o senso de urgência apropriado. É um problema difícil de resolver.

Embora seja incomum ver uma verdadeira negação da mudança climática, a falha sistemática em mitigar e preparar adequadamente é uma forma mais sutil de negação. Também é preciso superá-la.

 

O que você vê como a prioridade mais urgente para você e sua equipe nos próximos 12 meses?

Agora que desenvolvemos a Abordagem Estratégica, devemos operacionalizá-la. Iremos para várias regiões, identificaremos nossos parceiros dentro da equipe da ONU no país, as autoridades nacionais e as comunidades presentes. Juntos, definiremos quais são as prioridades e onde podemos fazer a diferença.

Precisamos nos questionar como iremos nos posicionar para não apenas responder às necessidades de proteção atuais, mas também para nos tornarmos uma agência de proteção proativa que mitiga a necessidade de proteção no futuro. Acho que é isso que os governos também espera que façamos.

O Fórum Global sobre Refugiados e o Pacto Global sobre Refugiados devem nos fornecer o incentivo e compartilhar as responsabilidades para mitigar o impacto das mudanças climáticas no futuro sobre os refugiados e as populações de países anfitriões. Isso significa que precisamos trabalhar com atores de desenvolvimento, com o setor privado, com as comunidades e com as autoridades nacionais. Afinal, isso nos ajudará a focar em um posicionamento estratégico unificado e, trabalhando juntos, podemos alcançar resultados em escala que tenham um real impacto e sejam ancorados nas necessidades da comunidade local.